Revista ACP Abril

Certificado Verde Digital: abertura ou discriminação? Os últimos tempos têm sido marcados pela monopolização das ordens do dia pela Covid-19. Com efeito, palavras como confinamento e desconfinar são, hoje, parte de um binómio constante no nosso quotidiano, ao que acresce, à data do presente escrito, a discussão em torno da Proposta da Comissão Europeia de um Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo a um quadro para a emissão, verificação e aceitação de certificados interoperáveis de vacinação, testes e recuperação, a fim de facilitar a livre circulação durante a pandemia de Covid-19 (Certificado Verde Digital). Surge, pois, formalizado, o tal mecanismo europeu de que em tempos se falava, e que, em geral e de forma sucinta, permitirá aos cidadãos fazer prova i) da vacinação contra a Covid-19 (certificado de vacinação), ii) de um teste negativo (certificado de testes), ou, ainda, iii) da sua recuperação da doença (e, subentenda-se, alegada imunidade – certificado de recuperação), para efeitos de, com isso, lograrem resgatar alguns dos direitos e liberdades atualmente suspensos ou fortemente limitados, em razão da necessidade de proteção da saúde pública. Em particular, poderão os felizes contemplados evitar, à entrada de um determinado Estado-Membro, a sujeição a quarentena, a autoisolamento ou, ainda, a necessidade de realização de um teste para deteção da infeção pelo SARS-CoV-2. Noutras jurisdições, mecanismos similares - sob a forma de passaportes, semáforos, ou, ainda, certificados - têm sido utilizados para efeitos de permitir aos cidadãos entrar em estabelecimentos públicos, assistir a eventos, ou, pura e simplesmente, permanecer em espaços fechados, como restaurantes e cafés. O que dizer de tudo isto? Uma segmentação da população entre vacinados e não vacinados, imunes ou não imunes, negativos e positivos, será, no mínimo, arbitrária É certo que, como a própria Comissão salienta na sua Proposta, a vacinação não será uma condição prévia para viajar. Por outro lado, é também verdade que se poderia argumentar que, quanto a uma franja da população — vacinada, testada ou alegadamente imune à doença —, eventuais restrições, como a quarentena à chegada a um determinado Estado-Membro, não mais seriam aceitáveis, porquanto não haveria já qualquer outro direito ou interesse público justificativo(s). Não é bem assim, contudo… Com efeito, se bem que o objetivo — aliviamento das restrições — se possa afigurar legítimo (e, sempre se diga, exigível!), já os pressupostos em que um tal passaporte ou certificado assenta e o modus operandi seguido, surgem, no mínimo, suspeitos. Repare-se que, i) não só inexistem, ainda, certezas quanto à capacidade de resposta das vacinas administradas, perante eventuais mutações a que o vírus possa estar sujeito, ii) como escasseiam conclusões quanto à questão de saber se os já vacinados poderão ou não, ainda assim, transmitir o vírus e infetar outros particulares (não vacinados), ao que acrescem iii) dúvidas várias quanto à imunidade adquirida em razão da contração da doença, para não falar das iv) dificuldades práticas em conter eventuais erros e a própria manipulação dos testes (dificuldades que a Comissão entende ultrapassadas, na sua Proposta). Isto posto, perante uma pandemia caracterizada pelo desconhecido e pela incerteza, afigura-se-nos que uma diferenciação ou segmentação da população entre vacinados e não vacinados, imunes e não imunes, negativos e positivos, será, no mínimo, arbitrária. Mas mais! Ainda que tais certezas pudessem ou possam vir a existir, importa notar que, num hoje (que, previsivelmente, se dilatará no tempo) em que o acesso à vacina não é, ainda, universal, encontrando-se dependente da forma como cada Estado-Membro estrutura o respetivo plano de vacinação, levantar estas restrições apenas para alguns — os beneficiados — sempre resulta numa divisão discriminatória da sociedade em dois grupos. Uma segmentação que, além de ilegítima — por diferenciar em razão da doença, da imunidade, ou da possibilidade de acesso a testes (dispendiosos) ou à vacina – pode mesmo redundar no fomento da adoção de comportamentos irresponsáveis por parte dos demais cidadãos, interessados em exercer direitos e liberdades jusfundamentais, pelos quais não deveriam ter de lutar. Perguntam-nos: como assegurar a retoma da atividade económica e dos vários setores? Com a mesma abertura gradual que se pretende e exige, mas sem uma diferenciação injustificada e infundada entre dois grupos da sociedade. Uma abertura inclusiva. Não discriminatória. • INÊS NEVES Assistente Convidada da Faculdade de Direito da Universidade do Porto Advogada Associada da Morais Leitão 9

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